Pelotas - RS -Fevereiro 35º. Sem muita opção, numa segunda-feira, fui levada a passear na Cherokee da flia. Bellagamba&Oliveira. Depois de um almoço com carne gaúcha daquelas tri especial, na churrascaria Santo Antônio, no Laranjal - a praia da Lagoa dos Patos, linda, reformando - um passeio agradável e uma sugestão: Charqueadas. Eu só sabia que eram galpões onde salgavam carne, o famoso "charque", uma das causas da Guerra dos Farrapos, aqueles 10 anos das mais sangrentas batalhas de gaúchos contra imperiais, onde quase nos transformamos em outro país ( será que falaríamos espanhol? ou um portunhol como aprendi na Uruguaiana Grande?) - estou delirando...
Surpresa! Meus olhos registraram uma paisagem de quadro a óleo impressionista! Rio, árvores, pedras, e uma casa branca estilo colonial do século XVIII. A casa foi residência do dono das charqueadas. Depois de bater um sino que se encontrava à porta, fomos recebidos por uma moça que nos perguntou:
- Querem fazer a visita? Temos a guia que vai acompanhá-las.
- Eva, ela sabe tudo - falou meu cunhado, Ricardo,que já havia feito o roteiro com a
esposa Gina e a filha Danielle.
Lá fomos nós, eu e minha sobrinha Bruna.
São treze reais por pessoa, e vale muito a pena! Um ponto turístico tão pouco falado e com tamanho valor histórico! Ali, em Pelotas, 10 minutos do centro, no meio de exuberante vegetação, um passeio no tempo. ( essa entrada é, na verdade, os fundos da casa). E um pier com salão de festas estão sendo construídos às margens do rio. E ainda tem viagem de barco, só agendar.
A Eva é uma professora aposentada, como eu. Na apresentação de cada sala, cada detalhe, eu via a senhora, o senhor, escravos, tropeiros...indescritível. Tudo o que aprendi na Literatura está lá, na realidade de uma época marcada pela opulência sustentada pela escravidão. Também estão as senzalas, quase ouvi a zabumba dos negros no pátio deles, castigados com o sal como as carnes que foram a garantia de divisas para meu Rio Grande do Sul.
Aí está a Eva, no meio do pátio interno da casa ( cobertura não existia). As mulheres só podiam sair para esse pátio interno, nenhuma podia ir para fora da casa. No romance que originou a série, a escritora Letícia Wierzchowski mostra o isolamento e confinamento das mulheres, cultura da época. Passavam dia após dia ( as senhoras e filhas e noras) aprendendo a bordar, costurar, ler e escrever, essas coisas de mulheres, as escravas fazendo o serviço domésticos. Os quartos e salas onde as mulheres ficavam só tinham portas para esse pátio,onde tomavam ( pouco) sol.
( Uma curiosidade, a Manoela não teve coragem de fugir com o Garibaldi- que ficou com Anita- e quando foi morar em Pelotas, ficou conhecida como " A noiva de Garibaldi")
As mulheres podiam desfrutar da natureza...pelas janelas...Quanto menor fossem os vidros e mais vidros nas janelas, mais dinheiro o dono tinha...
Essa casa só se conservou graças à paixão de uma das netas do senhor da "Charqueadas". Ela, a neta, já não era mais proprietária, morava em Porto Alegre. O noivo e marido resgatou a casa e deu de presente à amada, que voltou a Pelotas e morou na casa até morrer. A casa, hoje,tem um serviço de festas de casamento, formatura e jantares. Um neto da neta ocupa uma ala da casa.
Essa casa foi reformada e adaptada para a gravação da série " A Casa das 7 Mulheres", mudando a cor das janelas, que eram azuis e da própria casa, que era amarela. Tentaram deixar o interior quase igual, mesmo trocando o piso. Foi então que as "Charqueadas" de Pelotas ficaram famosas no Brasil. Ponto pra Globo, melhor pra nós, gaúchos.
A chegada nessa casa era pelo rio, uma vista maravilhosa! E fácil de proteger.
Esta é a frente da casa, com a entrada pelo rio. Vegetação espessa nas laterais, visão total de dentro da casa dos visitantes - ou dos maiores inimigos, os da " banda oriental" (explica-se a rivalidade até hoje com os que "hablán espanhol!")
Do outro lado do rio, ficavam os galpões e cercas com a atividade de salgar a carne, com escravos e feitores.
As senzalas ficavam à esquerda da entrada da casa, ainda tem um pedaço do que foi o tronco dos castigos, um bebedouro ao redor do qual os escravos dançavam e faziam suas festas, uma grutinha com um santo católico a quem os escravos eram obrigados a orar - mas que substituíam pelos seus orixás, como vimos nas conchas escondidas e espalhadas.
Visão frontal das senzalas, à esquerda, bem na frente do coqueiro, o tronco para açoitar os escravos. Eram bem separados de tudo, inclusive dos tropeiros, proibidos de falar com aqueles, escravos deveriam sempre saber que se fugissem, não teriam para onde ir.
O refeitório dos escravos era separado dos tropeiros por um passa pratos, também fechado para não haver nenhum contato entre eles.
Refeição: a carne aproveitada para os senhores, tudo o que sobrava de um boi, mondongo, tripas, coalheiras, eram servidos aos escravos, transformavam-se - pasmem- no nosso chiquérrimo e caríssimo MOCOTÓ! Me fez lembrar quando meu pai teve matadouro, década de 60, a carne e o couro aproveitados, o resto tudo ia fora, os carroceiros ficavam esperando os "miúdos" que vendiam nas vilas...E hoje, quanto custa um prato de mocotó? Comida de escravos... Mas é bem bom!
Sala de refeições, lustre e teto preservados.
A Eva sempre contando a história, com detalhes. Eu e Bruna interrompendo, perguntando, o que fez bem mais agradável - pra nós! O quadro com fundo amarelo é um legítimo Debret.
Cansados?
Eu também. Foi hora e meia de uma conversa muito agradável, uma pausa no tempo, eu nem esperava. Em Pelotas. Nós, de Uruguaiana.
Obrigada, Ricardo, Gina, Bruna, Dany.Foi um baita presente!
Uns registros:
Saint - Hilaire, sábio naturalista francês, hospedado na casa em 1820.
Lustre da sala de refeições.
No caramanchão, visitantes esperavam para serem recebidos pelo senhor da casa - nunca por mulheres!
O muro de pedras foi construído pelo pessoal da Globo para as filmagens da " Casa das 7 Mulheres"
E não se pode fotografar nas intimidades...quartos, salas internas, escritórios, piano, quarto de banho, pinicos de porcelana com tampa( que a Ana Maria Braga pensou que fosse sopeira - ksksks, cultura inútil, podia passar sem esta, mas é engraçado), a cozinha com os fogões imensos, um armário onde se afastavam toalhas e lençóis e tinha uma escada, era uma saída secreta para o sótão, uma segunda casa lá em cima, em caso de invasão. Boas recordaçõe. Como foi bom!