Um filme que está fazendo sucesso e polêmica ( mais polêmica que sucesso) é "BRUNA SURFISTINHA". Uma mocinha que resolve ser prostituta pois dá mais grana, só pra ser breve. E não é que ela fosse pobre, não. Estava se dando mal na escola ( particular, classe média), dava trabalho estudar. Trocou a escola pelas baladas e entrou para a mais antiga profissão do mundo. E nem foi corrida de casa. Bonitinha, um corpicho daqueles, rebolado " tomara que me c...", SE DEU, como dizem lá na fronteira. Programa com quem pagasse bem, pra que passar trabalho na vida? Uma dormidinha, e ganhava mais que qualquer executivo. E é real, a protagonista é a Rachel, escreveu a autobiografia e saiu o filme.Tem uma passagem do livro assim: "Transas enlouquecidas, surubas, muitos homens ( e mulheres) diferentes por dia, noites quase sem fim. O que pode ser excitante para muitas garotas como eu, na efervescência dos 20 anos, para mim é rotina. É meu dia-a-dia de labuta." Isso a Rachel escreveu. Ou seja: Ela gostava muito da coisa. Ficou muito rica, o livro vende muito, o filme tem grande bilheteria. Safadeza faz sucesso. Não vi o filme, não li o livro, apenas olho as críticas. Mas que o exemplo é fantástico para todas as jovens que estão em dúvida quanto à carreira: ser prostituta fina. Se fosse homem, podia ser jogador de futebol: chutar bem na bola( ops!) e entrar num time rico- só que não é tão fácil... A polêmica é: Quanto pode influenciar nas cabecinhas das bonitinhas essa "sugestão" de futuro?E aí, gurias?
Lá na fronteira, quando eu era pequena ( na idade e no corpo ), qualquer suspeita de que a filha estivesse "tendo um caso" ( hoje é ficando)ou "se perdido" ( quer dizer: perdido a virgindade) ou engravidado ( cruzes!), o pai botava a guria pra fora de casa, na rua, mesmo.A vergonha da família. E era aí que as mocinhas "se perdiam", sem condições de viverem na fina flor da sociedade, iam pra "zona do meretrício", onde estavam os cabarés, as casas de luz vermelha. Por um prato de comida e um teto, a moça virava "china", prosti, meretriz. Quanto mais bem frequentado o cabaré, melhor. Mas tinha os "bagacêra", e as gurias da zona passavam muito trabalho, sujeitas a tudo, a surras, a doenças. Exploradas ao máximo. Foi aqui, neste trecho, que me lembrei do IVO RODRIGUES. Tenham paciência, que a postagem de hoje é longa, mas eu preciso contar a história que eu acompanhei, conheci o Ivo e ouvi suas histórias do próprio.
Minha tia era a melhor costureira de Uruguaiana. De manhã, as esposas dos ricos iam lá,em carros próprios com chofer ( motorista), fazer tailleurs e vestidos para as filhas debutantes, à moda Dior - francesa - cópias das revistas Vogue e Labore, ou o costureiro das débs, Rui, o de Porto Alegre, chic na época.
À tarde, ( pois com o trabalho noturno, dormiam de manhã) iam as chinas , mas só as muito finas,que podiam pagar bem, discretas, chegavam num auto de praça ( táxi), e as roupas que minha tia modista costurava, me enchiam os olhos. Eu fiquei ao lado da máquina de costura da minha tia madrinha - e aprendi a costurar muito bem - desde que nasci,só saía quando minha mãe chamava ( comida, colégio, armazém, essas coisas comuns) e quando comecei a trabalhar com meu pai nos açougues ( mais ou menos aos 8 anos). Vi e ouvi cada coisa,poderia escrever a história das mulheres e das amantes dos senhores da época...Mas vou falar só do Ivo. O Ivo Rodrigues foi o primeiro fresco reconhecido e assumido publicamente no Brasil - hoje se diz drag queen. Fresco. Isso mesmo. Lá na fronteira, "gay" é FRESCO. O cabaré do Ivo era ponto turístico. Ia gente de todo Brasil, Argentina, Uruguai, até da Europa ( EUA não era referência para a sociedade na década de 50, mas tinha muito gringo que aparecia lá). Casa cor-de-rosa, antiga propriedade de estancieiro, centro ( na Flores da Cunha), em frente à Delegacia de Polícia. Podia ter lugar mais respeitado? Decoração bem de fresco, cheio de cortinas de cetim, flores, sofás de veludo vermelho, espelhos importados da França até no teto, cama redonda ( uma excentricidade!), o quarto dele cheio de bonecas, daquelas de tamanho de criança de ano e cara de porcelana, louças e cristais finíssimos, frequentadores cheios de grana. As moças do Ivo eram selecionadas. Até francesa, tinha. Educadas, algumas muito caras, ele - o Ivo - levava pra minha tia fazer os vestidos delas, só coisa boa( os vestidos). Chegava sempre à tardinha, numa carroça que chamavam de Vitória, aquelas que tem cocheiro num banco da frente, sem cobertura, e atrás uma cobertura preta alta, tipo daquelas de "O Vento Levou".Dois cavalos bem gordos, bem tratados, arreios de couro, só faltava a pluma na cabeça. Mas quem descia dessa Vitória-carruagem era um homem imenso, quase dois metros de altura, uns cento e cinquenta quilos, calças compridas e camisa largas,sempre de alpargatas de couro, cabelos ralos encaracolados, uma cara imensa com uns beiços grandes, olhos meio puxados. Ninguém conseguiu dizer qual a procedência. Dizem que foi criado por um estacieiro muito rico e muito fino. Tinha um desgosto: era analfabeto. Ficou emocionado às lágrimas quando eu aprendi a ler e escrever e escrevi e li uns poemas pra ele.
Esse era o Ivo. Na rua, era um homem. Furioso se alguém ofendia. Tinha um facão pra correr quem se metesse com ele. Naquele tempo, preconceito, discriminação se resolvia com facão.Só desmunhecava quando estava dentro da sala de costura da minha tia. Então desenrolava finos brocados, tecidos trazidos das Índias, ou de Buenos Aires( que era a Londres ou Paris da América) , eu ficava maravilhada com os bordados que as bordadeiras faziam, dias e noites naqueles vestidos imensos para aquele personagem da minha infância, que eu amava como se fosse um super-herói, os sapatos, ah, os sapatos, mandados fazer na Europa, alguns em Novo Hamburgo, talvez número 50, com plataforma e saltos altos, e ele levava as perucas, quantidades, do platinado ao cabelo preto, sempre crespos ou com cachos, e ele me perguntava: "Bonequita, qual a mais linda?" muitos doces e regalos ele entregava pra minha tia, e ela me dava, nunca me deu nada diretamente. Na minha fantasia de infância, eu entendia: nossos mundo eram muito diferentes. Pra mim, ele era um artista, algo inalcançável.Mas eu sabia. O Ivo ficava se pintando com os cosméticos coloridos, os lábios carnudos imensos, muito vermelhos, batons também da Argentina, trocando perucas, escolhendo pulseiras e colares de jóias verdadeiras- parecidas com as da Elizabeth Taylor. Mas quando saía à rua, voltavam roupas de homem.
Todos os grande políticos da época, todos os milionários que visitaram o Brasil,foram lá e mereceram um vestido novo. Quando o Presidente Perón visitou o Cabaré do Ivo, o vestido foi de veludo grená, com bordados no decote e uns cortes de onde saiam tufos em plissé de tule, um de cada cor, o sapato dourado todo cheio de pedrarias, - tenho lembranças bem detalhadas, pois o Ivo marcou essa minha época de que tudo era motivo para fantasias...Como nos filmes das matinés, os musicais, Virgínia Lane - que também esteve fazendo suas danças por lá...
Meus irmãos e amigos - adolescentes na época, me diziam que eram "convidados" especiais, fora da hora dos adultos ( não admitia jovens na casa), para conhecerem o famoso "quarto do Ivo". Ele os chamava de "Guizinhos" - isso mesmo, sem o R, e oferecia "pessicola". Nem imagino o que mais. E as moças do Ivo pareciam bonecas, nenhuma falava mais do que o suficiente, a estrela era apenas ele. Quanto aos GUIZINHOS, sei de alguns que foi ele, o Ivo, quem pagou estudos na capital, hoje são profissionais bem reconhecidos, tenho até os nomes. Mas nunca direi, o Ivo era muito discreto.
Tá. E o que tem a ver com a Surfistinha?
Pois os pais botavam na rua a filha que "dava um mau passo". As gurias viam todas as portas fechadas, tias, avós, ninguém queria as "perdidas", algumas nem 15 anos tinham. Nem sei quantas
dessas meninas o Ivo acolheu, deu casa, comida, criou o bebê, encaminhou na vida. E mandava pra outros lugares numa situação de trabalho comum, nada de programas, melhor dizendo, não prostitutas. Quantas, já na prostituição, ele recolheu das ruas - cheias de doenças, fez tratamento de saúde, algumas se tornaram mães e donas-de-casa. Ele preferia trazer mulheres de fora, e mandava fazer exames: nenhuma mulher doente poderia trabalhar com ele. Trabalhar: era isso. Aquelas mulheres trabalhavam. Jovens e bonitas. As velhas, ficavam de ajudantes. Ou seja: Ele sabia que a mais antiga profissão do mundo é muito cruel quando a pessoa fica velha. E o futuro é, na maioria dos casos, triste. São poucos e poucas que conseguem se manter. Foi assim com ele. Começou a faltar dinheiro para sustentar as meninas que tirava das ruas e longas filas de pobres à frente da casa, agora já na Treze de Maio, sem a pompa da casa cor-de-rosa, os pobres que faziam as refeições na casa dele, todos os dias tinha o almoço pra quem tivesse fome.
Morreu pobre, abandonado também por aqueles que ele ajudou e que estavam em condições financeiras muito, mas muito boas. E se tornou uma lenda. O túmulo dele, construído por amigos, tem até hoje as bonecas.Fiz um breve resumo, tem muita coisa a contar.
E o que tem a ver com a Surfistinha? Não sei explicar. Tem um elo. Tem um elo perdido. Talvez o medo de que as meninas se sintam deslumbradas pelo sucesso de uma. UMA. A celebridade escolhe uma em milhões. Surfistinhas... Quantas estão por aí, amargando a exploração, sem mais um Ivo para salvá-las...