INVISÍVEL
Desde
que completei sessenta aninhos bem vividos e me aposentei de vez como
professora, o mundo resolveu me ignorar. Assim:
Chego
num lugar, aquele barzinho que eu e meus colegas sempre fomos à noite, depois
da aula, comer xis ou batatinha frita acompanhando uma cerveja bem gelada. A
turma já está lá. Grito “OIEEEE” e o pessoal me responde com um “OI”
descuidado. Procuro uma cadeira, ninguém abre lugar pra mim à mesa, me meto
entre dois amados colegas, agora ex-colegas, ou será que eu é que sou ex? É bem
estranho ser “ex”, tipo assim, não é mais nada...
Como
sempre, o principal assunto não é o assunto, o importante é falar, todo mundo fala
de tudo, desde filosofia, futebol, política, sexo até chegar à sala de aula, alunos salientes e pais ausentes e direção
prepotente, governo incompetente e salário vergonhoso, mudam os tempos mas os
papos são os mesmos – a cada cerveja, as vozes aumentando, discussões
aprofundadas. E eu ali, deixei de ser protagonista, parece que ninguém me
enxerga. Passei mais da metade da minha vida argumentando com inteligência,
sempre ouvida, acho que devia ser advogada ou política, pois falo muito bem. Só
que, agora, começo a falar e tem sempre um corte, coisa feia interromper e
trocar de papo, então me encolho, apertada entre dois amigos que dão um tapinha
na minha mão, tão carinhosos, eles, olho bem para cada um, eles me olham, mas
não me enxergam, quero falar, mas estou invisível.
-
Sou a Bella, a amiga de vocês, estão me vendo? Olhem bem, sempre organizei todas
as festas, fui até escolhida Rainha da Turma, a mais agitada, já pintamos e
bordamos e dançamos e cantamos, tivemos até um bloco de carnaval que eu organizei,
Os Dez-Contentes, lembram? Não eram só dez, acho que tinha mais de cem. Alguém
faz um “Ah,é?”educado, eu fico com cara de idiota, que vontade de morrer,
sempre me disseram que a gente fica velha e invisível, pode falar à vontade que
ninguém dá bola. Passaram imagens pela minha cabeça, abri a boca pra lembrar
quanto tinha feito por essa turma, mas as palavras foram sufocadas pela chegada
de uma garota, a professora que me substituiu quando me aposentei, todo mundo
levantou pra ceder a cadeira – todos, não, as mulheres ficaram plantadas,
imóveis, desviando olhares, sempre foi assim, gente nova e desconfiança andam
juntas. E eu ali, invisível. Ninguém me apresentou para a garota que até me
cumprimentou com um sorriso permanente. Tomei uma atitude, já que nem a moça do
bar me trouxe um copo, ou pegou meu pedido, boca seca, mas levantei, arrastando
a cadeira e estendendo a mão para o centro das atenções, a novata, eu já estive
nessa situação, faz tempo, de gata/gostosa e também arranquei suspiros e olhares.
-
Sou a Bella, que te deu a vaga na escola, me deves uma cerveja – apertando a mão macia
da moça. Ela sorriu, de novo, cara de paisagem, disse um muito prazer educado,
fez que não ouviu o que falei. Beijou todo mundo e sentou quase de costas pra mim.
E acabei minha participação, agora era ela, minha substituta até nos amigos.
Aliás, ex-amigos.
A
conversa reiniciou, outro foco, homens a postos, carne nova no pedaço, mulheres
disfarçando, e eu invisível, de novo. Ou será que a Bella, a mais divertida da
turma, agora é uma miragem?
-
Menina, me traz uma coca zero e um xis salada – gritei pra garçonete.
Agora
quero ver, a turma vai cair na minha cabeça, a Bella tomando coca, só se estiver
doente. Mas ninguém disse nada. Se eu me rasgar e ficar pelada e subir na mesa,
acho que nem vão me notar.
Deixei
a coca e o xis intocáveis, invisíveis
como eu, disse tchau e todo mundo
respondeu “tchau Bella”, um ato mecânico, como uma obrigação ou um alívio, sou
uma coisa chamada Bella.
Peguei
meu carro e saí sem destino, vazia, uma sensação de inutilidade, será isso a
melhor idade? Melhor pra quê?
Parei
o carro na beira do mar – eu falei que morava na praia? Pois é, num paraíso.
Uma lua linda, as ondas em espumas. Um aperto na garganta, vontade de chorar.
Coloco a cabeça entre as mãos e me aperto. Estou com peninha de mim? Essa não!
“Reage, Bella”, é uma voz interna, isso sempre
acontece, é o meu anjo me chamando:
- Bella, Bella, você já teve filhos, você já plantou uma árvore. Falta só você
escrever um livro.
Um
livro? Isso todo mundo faz quando se aposenta. Contar minha vida? Coisa chata,
isso de biografia, só os parentes compram, por obrigação, nem leem...E os
filhos, que também vão atirar o livro da mãe numa gaveta qualquer.
E se eu escrever como se
fosse outra pessoa? Tipo o Fernando, que tinha três homônimos...E eu tenho a
Mirinha, que enche de bagunça a minha vida. Beleza, a Mirinha tem tanta história, apronta tanto,
faz cada coisa que pode ser também minha inspiração, ela é original, exótica,
tem uma cabeça inseminada pelo demônio, é original, essa doidinha totalmente liberada. A Mirinha vai me ajudar, com certeza, a minha eterna
amiga, agora também aposentada. É uma
sexagenária que nem parece, alto astral,
divertida, tenho certeza de que vai me incentivar nessa nova etapa de minha
vida, eu quero voltar a rir, a sorrir, a gargalhar...Deletar a turma do bar? Talvez...
Chega de ser ignorada.
É
isso aí, quase gritei.
Voltar
a existir. Quem sabe, até fico famosa...
Preciso
ir pra casa. Escrever, escrever, escrever.
Concretizar-me.
Deixei
o oceano rumo ao sucesso.
Olhando pelo retrovisor a lua refletida no mar, dei
adeus a um estado de abandono, foi um momento transitório, esse, de decepção
comigo mesma. Como se no oceano naufragassem todas as tristezas do mundo, como
se o sol me respingasse purpurina ouro e prata e eu me transformasse numa estrela
radiante de sonhos e esperanças.
Um infinito de expectativas abriu-se à minha
frente: imaginei-me em uma outra entrada
no barzinho, esse do qual saí tão derrotada, eu voltando ali, a escritora Maya Bella( Maya por ser um nome mais tchan...artístico, e Bella pela história), milhões de exemplares
vendidos, milhões de compartilhamentos, You Tube, I Tube, They Tube, autógrafos, fotógrafos e flashes, a turma toda levantando, cadeiras
puxadas pra mim, muitos copos em brindes, e eu assim, importante...
Bella existe: Bella tem passado, presente e também futuro. Tem história.
Eu
não sou invisível.
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