PARTE 1-1969 em pleno século xx
“O
mundo vai acabar no ano dois mil” – lembro como se fosse hoje...
A Mirinha
chegava de Woodstock, 1969, andava nos
States, ganhou a viagem de presente por ter passado no vestibular.
O pai da
Mirinha fazia tudo que ela queria, para desespero da mãe, uma socialaite de
carteirinha, só usava tailleur e coque, uma dama, e tinha medo que a filha fumasse maconha
ou cheirasse lança-perfume – as drogas da época.
Eu estava ansiosamente esperando as novidades que minha amiga trazia – nós, as duas, inseparáveis até a morte, com dezoito aninhos, magras,geração de um Lindo Sonho Delirante, se nossos pais soubessem o que era
esse LSD iam ter um troço.
Mirinha
chegou de batinha, saia comprida e sandálias de tiras de couro, o uniforme
hippie, com uma tiara de flor e um PAZ e AMOR
pintado na imensa bolsa de pano. Eu morri de ciúme. Mas ela me trouxe
brincos de lata e um vestidão estampado, fiquei assim, parecida.
E nem me
importei se o mundo acabasse no ano dois mil, parecia tão longe, quando a gente
tem dezoito anos não se importa com o futuro.
A gente queria era ser comunista, nossos
colegas todos queriam jogar bombas nos americanos e nos milicos, era moda ser
da esquerda, um futuro assim, de comunista à petista e à jornalista. Que orgulho dizer que fomos
fichadas pelo DOPS na ditadura, perseguidas pelo sistema.
Eu e Mirinha casamos cedo com homens lindos e machões, para nos livrarmos dos pais machões. E ter filhos e pintar a cara e ir às passeatas com os filhos pendurados na cintura, para o desespero dos maridos
que nunca conseguiram nos transformar em madames.
Nós duas.
E nem o mundo acabou, e nem
terminamos jornalismo. E as duas
viraram professoras, casaram, tiveram filhos, ficaram viúvas, se aposentaram,
bem nessa ordem.
Hoje estamos em dois mil e quatorze, o direito de fazer nada, ou fazer tudo que der
na telha.
PARTE 2 - Anjos
Estamos
no século vinte e um, quem diria. Podemos encher a boca e dizer que somos
sobreviventes de uma odisseia no espaço, vimos a construção do muro, a queda do muro, guerras frias e quentes, bebês em tubo, de
rádio a TV e informatizamos o mundo – nós, os nascidos no século vinte.
Mas
parece que o mundo parou. Tudo se repete. Até as caras pintadas na rua, o povo
insatisfeito, os espiões americanos que sabem até onde está o controle da TV de
nossa casa. O Google vem até minha rua e filma o anjinho barroco em cima do meu portão. E a tecnologia que só é boa se
conseguimos dominá-la.
Fiquei enrolando com as palavras porque estou muito
preocupada.
A Mirinha não consegue admitir essas novas ferramentas, não quer
saber de computador nem de internet. Diz que tudo que a prende em casa é
inútil.
Falei
no burro, apontou as orelhas, olha quem está no telefone:
- Bella- era a Mirinha - nem sabe o que achei...O DVD da Amy. Lembra da Amy Whinewouse? Morreu
jovem e famosa; olha eu aqui, cheia de
rugas, vegetando nesta terceira idade que me pesa nos ombros – minha amiga, a Mirinha e suas
crises, me preparo para a choradeira.
-
Nossa, Mirinha, vem pra cá, estou escrevendo sobre o século passado, nossas vidas - tentei tirar minha amiguinha da fossa...
-
Era só o que faltava, Bella, ficar remexendo no
nosso passado,tem coisa melhor, ouve o que acabei de escrever, faz dois anos da morte da Amy, uma homenagem ao anjo da voz: “Não há lugar na
Terra para os anjos. Anjos precisam de outros alimentos que não o nosso
indispensável pão de cada dia para nossa necessária transpiração. Anjos são
diferentes, alimentam-se de inspiração. Não conseguem discernir entre corpo e
alma, essa dualidade que separa o concreto do abstrato. Os anjos só têm um estado:
alma com corpo integrado, com a urgência de botar pra fora essa coisa que ferve
no sangue, no cérebro, nos dedos, e que tem que sair de um jeito, som, gesto,
palavra, uma coisa que fica solta no mundo para ser capturada pelos comuns
mortais e que chamamos de poesia.” Gostaste, amiga?
-
Mirinha, você acaba de salvar o século
vinte e um. Uma voz atual, pena que a Amy morreu.
-
Os anjos não morrem, Bella. Eles vêm à Terra, deixam o encanto e se
cristalizam. Lembra daquele dia 23 de
julho? Nós, na praia, no boteco do Betão, um baita frio e a gente chorando e
bebendo à Amy...
Mirinha desligou o telefone sem se despedir.
PARTE 3 - Demônios
Agradeci
à amiga pela mensagem. Eu acredito em anjos. Quem sabe, Mirinha é um anjo que
está na minha vida para me sacudir com a delicadeza da poesia. Essa maluca tem
muitas cartas na manga, sempre que eu penso que ela está em depressão, fechada
em casa, ela me assusta com um sopro de vida. O que seria do mundo sem os
artistas? As vozes, as cores, as formas, beleza não tem época. Volto ao meu
século vinte. Vou retribuir à Mirinha esses momentos mágicos:
-
Oi, querida – liguei imediatamente, ela se surpreende, sempre é ela que me liga
– tenho um convite, vamos chamar a galera,
Queijos & Vinhos, sessão MPB e Bossa Nova, reviver os festivais dos
anos 70 e 80, que achas, Mirinha?
-
Quê? Tá ficando louca? Música brochante? Em plena quarta-feira de cinzas? Você precisa se atualizar, Bella.
Fiquei
em estado de choque. Como pode a Mirinha se transformar em minutos, nem isso.
Estava tão sensível, falando de poesia, é a própria metamorfose ambulante, e eu
com peninha... E continuou, a danada:
-
Olha-te no espelho, tu pareces uma velha,
espera só, ouve – colocou o fone na caixa de som, e eu, congelada na frente do espelho, uma velha – Mirinha gritava:
- Isso é funk, pop-rock, sei lá,
toca em tudo que é balada, está nas novelas, tem que pôr as mãos nos joelhos e
rebolar...
-
Mirinha, há pouco me falavas da poesia, isso não tem nada de poético, onde andam
os anjos que encantam e se cristalizam?
Não
adiantou nada. Mirinha está completamente doida. Diz que vai comprar um shortinho,
meias pretas e botinhas, camisa amarrada na cintura e se mandar pro Rio de
Janeiro, num festival da mulher fruta.
PARTE 4 - A Redenção
-
Que ridículo, isso, na tua idade, amiguinha, que fiasco, Mirinha...
-
Fica aí com teu computador, escrevendo esse livro que nunca acaba, olha, Bella,
a vida está passando, esse teu casamento com o Google é uma coisa virtual, não
ajuda na conservação da espécie...
- HALOOOU, Mirinha, já passamos dos sessenta,
querida, agora é esperar que os netos produzam os bebês...Nossa contribuição
ficou no século vinte. Isso de shortinho é coisas de menininha.
- Tu és muito antiquada, Bella, os garotos querem gente com atitude, olha a
Suzana Vieira, superpoderosa, mais velha que nós, a Glória Menezes é uma vovó hiponga, Gil, Caetano, Roberto e Erasmo, todos com mais de setenta,
arrebentando a boca do balão. Isso de idade, nada a ver. Estamos em 2014. E tu aí, com a Tropicália, que coisa mais antiga...O Roberto Carlos agora até carne come, e de boi...Ora, Bella, qual é a tua?
Viver é não ter a vergonha de ser feliz. Vem, tenho até sertanejo
universitário,o cauboy vai me pegar... E axé, ainda tem tudo do carnaval...Claudinha Leite, Carlinhos Brown, Ivete...
Parte 6 - A Entrega Total
Gente: - Comecei
tão bem este meu conto, analisando a situação do Planeta no século passado,
desenterrei até o lança-perfume, se eu conto como se usava, a rapaziada vai
morrer de rir ( o barato era colocar num
lenço e cheirar, bilhões de sinos batiam dentro da cabeça, isso me contavam,
pois nunca usei – é verdade, nós queríamos ser
modernas, mas éramos muito, muito caretas), essas cortadas são só pra dar um colorido
especial, lembrando a reflexão da Mirinha
sobre poesia...
A confusão que se criou agora, com a rebeldia da amiga, mandou tudo pra Pasárgada...
É.
O mundo não parou.O ano dois mil não acabou.
Preciso
me mexer antes que a Mirinha resolva concretizar suas ameaças. Ela só late, não
morde. Quer melhorar meu astral. Se faz de louca por gosto. Penso que conseguiu.
Vou
vestir meu jeans, minha bota de montaria, quem sabe uma bolsa com franjas e vou pra casa
da Mirinha. Ver de perto a situação. Mais matéria para meus contos.
Mesmo porque nada vai mudar nossa realidade.
Nascemos, sim, na primeira metade do Século Vinte.
E faz tempo!