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Era uma vez uma mulher que tinha marido e três filhos. Moravam uma cidade muito muito distante.
Almoço em família sempre, comida gostosa, hora de falar da vida. Melhor: cada um falava do SEU dia. O que fizera, o que havia a fazer. Era tudo muito importante para aquela família. A vida de cada pessoa, principalmente, de cada filho, o dia como foi, o que fizeram, o que havia a fazer, sentimentos, dores, novidades, todos sabiam de todos.
Cada dia tem uma história. Protagonistas com suas rotinas e ideias. A hora da verdade de cada pessoa. Isso mesmo: de cada PESSOA concreta, palpável, real.
Era uma família muito, muito feliz. Todo mundo estava ali, naquele momento de encontro.
Os filhos cresceram,estudaram, casaram e cada um pra sua casa. O pai/marido morreu, a mulher ficou velha e foi morar sozinha.
Tudo tão comum que esta história parece sem graça. Mas não é.
Era uma família muito, muito feliz.
Por quê?
Porque essa família tinha todos os dias uma informação importante: todos se conheciam, se ajudavam, se entendiam, brigavam, se amavam, participavam uns da vida de outros. As personalidades se fortificavam.
Não sou uma pessoa saudosista, com certeza. Mas observo como um momento tão simples pode ajudar nas relações humanas. Não basta pra nós, hoje, a instantaneidade da mensagem do whats, muito boa mas também muito rasa. Nem conseguimos responder e já tem outra chamando, outro assunto, muda o foco, já tem outra novidade.
Realmente, às vezes, é mais fácil falar com alguém pelo whats. Pessoalmente, todo mundo tem mais o que fazer.
O celular está ali, todo momento, a TV tem o noticiário para o pai saber quem fez a delação premiada, houve um homem bomba que se explodiu em NY. O mundo lá de fora está na mesa.O indivíduo real, atual, persona, ficou esquecido. E o tempo passa tão rápido, desejos, ambições, ansiedades ficam soterrados num inconsciente, mais adiante a terapia será necessária, ansiolíticos substituirão conselhos e carinhos e confissões.Silenciados na hora da reunião da família.
Porque nem sempre se reúnem todos no dia ou na noite. Porque todo mundo tem assuntos mais importantes que a própria vida. Porque mais interessante é a situação da política, do estupro, da violência, da crise, do dinheiro, da intolerância, da discriminação, do terrorismo, do aluno que matou meia dúzia, tudo entra na casa, na hora em que os protagonistas deviam atuar e têm que falar do que acontece na aldeia global. Um mundo muito ruim entra direto na casa, que deveria ser a hora da família.
Comida gostosa perde o sabor; arrastão em Copacabana, acidente matou 70, roubaram o dinheiro dos hospitais, e por aí vai...A TV tem o centro das atenções. Precisamos ver o que acontece no mundo.
Parece que se a gente não souber quem morreu na Sérvia, o que o Trump falou pro coreano, se o presidente vai ser preso, isso toma o lugar do meu filho que está aqui e agora e depende de mim.
SE na hora da reunião da família desligássemos TV, os protagonistas da vida real NOSSA voltariam a atuar.
Eu quero tanto saber como foi o dia do meu filho. Meu filho precisa saber que papai ou mamãe ou titia ou vovô, está aqui, que a VIDA de cada um da pequena família, neste momento, é único, e é mais importante. Tenho tanto a contar, preciso tanto conhecer esta pessoa que amo.
Experimentar desligar a TV na hora que a família esta reunida. Celular desligado e LONGE da mão. Vai ser difícil no início. Talvez reine o silêncio, talvez alguém olhe o whats, ah, isso também não vale. Talvez a mamãe fique angustiada,o grupo das amigas da academia, talvez o papai precise saber o resultado do jogo, pode ser que alguém do mundo de fora precise mais que alguém do mundo de dentro.
SERÁ? Será que tem um novo colega, um pé, doendo, uma nota muito boa ou muito ruim, uma foto linda no whats que viu ontem, uma camiseta que ficou apertada, um filme que vai passar, a luz que ficou acesa, não devem se atrasar pro colégio, arrumar o quarto, escrevi uma história, fiz um gol, qualquer coisa assim, isso da vida de verdade...
O momento do mundo, suas desgraças e seus prazeres, estará sempre pronto com garras e fascínios, não precisa trazer na hora da reunião da família, o mundo de fora precisa ficar lá fora, haverá muitos momentos de falar, pior, obrigatoriamente cada um vai viver, afinal, o mundo está sempre presente. Mas os momentos de dentro de cada casa são únicos. TEM que ser agora, esses dependem do agora.
É a identidade, a personalidade de cada filho, filha, pai, mãe, vó.Amanhã talvez seja tarde.
Lá fora, somos O GRUPO. No celular, os grupos virtuais. Necessários, hoje precisamos estar conectados, sobrevivência,o que acontece no mundo, tragédias e comédias, afinal, ninguém precisa ser alienado.
Mas...Mas o momento de dentro de casa é insubstituível.
Pelo menos, dentro de casa, tem que ter a hora da verdade.A verdade de cada um, um ser importante.
Dentro de casa tem que haver aquele ACONCHEGO, aquele lugar de ENCONTRO,por mais que as coisas lá de fora estejam ruins, a casa tem braços que PROTEGEM. Como é bom ser compreendido, ser ouvido, poder opinar sem o medo dos estereótipos, da discriminação. Minha casa é minha fortaleza. Onde eu sou eu eu.
Talvez até aquela palavra meio desgastada volte a ter significado: AMOR.
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